O dia 14 de julho está marcado na memória dos moradores de Maravilha. Há exatos 10 anos, a maior enchente já registrada no Rio Iracema atingiu centenas de residências e deixou um rastro de perdas materiais e emocionais no município. Em meio a adversidade, também floresceram gestos de solidariedade e resiliência, que marcaram aquele período.
Naquele fatídico dia choveu um acumulado de mais de 100 mm em apenas seis horas. Com o volume de chuva, o rio transbordou, atingindo mais de 300 residências — sendo que três ficaram completamente destruídas. O setor industrial e comercial também sofreu impactos severos, com 86 estabelecimentos atingidos. Levantamentos divulgados à época pela Administração Municipal, apontaram que o prejuízo estimado no município, tanto na área urbana quanto rural, ultrapassou os R$ 30 milhões, um valor exorbitante naquele contexto.
Durante a última década, intervenções foram realizadas em trechos onde o leito do Rio Iracema corta a cidade, com o intuito de aumentar sua capacidade de vazão e prevenir novos desastres. Durante a produção desta reportagem, ouvimos relatos de moradores que foram diretamente afetados. As obras já concluídas no rio trouxeram uma sensação de alívio, mas a aflição persiste de alguma forma. Chuvas fortes ainda causam apreensão; quando o nível do rio aumenta e é possível ouvir o som da água batendo na ponte, a angústia desperta famílias, que ainda ficam sem dormir. Esses moradores compartilham como encontraram forças para recomeçar e destacam a importância de manter o Rio Iracema sob constante atenção das autoridades, com foco em estratégias de prevenção para evitar novas tragédias. Também ressaltam a necessidade do envolvimento da comunidade na preservação ambiental.
Um dia antes da enchente, Leda Gheno, moradora da rua Prefeito Albino Cerutti Cella, sequer imaginava que passaria por momentos desafiadores a partir do dia seguinte. Há menos de uma semana havia aberto uma loja em anexo a sua residência. Com o cansaço de um dia agitado, se recolheu para dormir, mas acordou na manhã seguinte e se deparou com a casa invadida pela água. Todos os cômodos já haviam sido atingidos e a mobília estava revirada. Ela e a filha foram até a casa da sua mãe, nos fundos do terreno, que apesar de ser mais alta também acabou inundando. Com a ajuda de familiares, as três foram resgatadas e acolhidas por amigos. Quando a água baixou, Leda foi até a residência e se deparou com o que definiu como um cenário de guerra: lama por toda parte, móveis revirados, a loja e as mercadorias destruídas. Apesar desta lembrança triste, os gestos de solidariedade da comunidade maravilhense também lhe marcaram. Aos poucos, a família foi restabelecendo as perdas materiais e o negócio. Leda também destaca a importância de um senso coletivo de cuidado com o meio ambiente. “Enquanto nós continuarmos destruindo a natureza, é preocupante. A sensibilização tem que vir de todos nós”, afirma.
Airton Frozza, morador da rua Marechal Cândido Rondon, contou que os transtornos com alagamentos eram constantes em sua residência, mas nunca imaginou que a água poderia atingir de forma tão dura a sua família naquele início de manhã. A madrugada já havia sido difícil, com a preocupação em relação à chuva e a possibilidade de alagamento. Mas quando a água subiu de vez, foi tudo muito rápido, sem tempo para maiores reações. Ele e a filha estavam em casa, e sua esposa estava na residência do sogro, localizada no imóvel ao lado. Por volta das 6h, a água começou a invadir a casa pela porta dos fundos, de forma repentina e com muita força. A correnteza era tão forte que logo ficaram ilhados. Os vizinhos que residiam nos fundos, mais próximo do rio, pediam socorro pois a residência chegou a ser arrastada e os destroços bateram contra o imóvel onde Airton estava. Mesmo com o impacto e a destruição da estrutura, os vizinhos conseguiram acessar a casa de Airton, onde todos foram até uma janela para pedir ajuda. O resgate ocorreu através de um morador, que usou um barco com motor. “A correnteza era muito forte, o barulho da água era assustador”, lembra. A família sofreu perdas materiais e prejuízos no negócio, que funcionava no mesmo local. Desde então, reformaram a casa, que agora tem dois pisos, e aos poucos, buscaram se reerguer. Com as intervenções no rio, a situação melhorou, mas a apreensão permanece, e basta uma chuva mais forte para que Airton e sua esposa fiquem sem dormir. Para o maravilhense, é importante seguir executando melhorias junto ao rio, e realizar ações de manutenção, visando desassorear áreas onde a terra vai acumulando com o tempo. Outra preocupação diz respeito ao córrego que passa pela Rua Marechal Cândido Rondon e desemboca no rio, nos fundos de sua casa. A canalização do córrego tem pontos muito estreitos, que fazem a água represar e segue provocando transtornos aos moradores do local.
Leonice Knebel, que também morava na Rua 27 de Julho na época da enchente, relembra a madrugada em que acordou com água já dentro do quarto, constatando que estavam ilhadas no imóvel. Se preocupou principalmente pois sua mãe, já idosa, e a filha, que estava com oito meses de gestação, estavam no local, em contato direto com a água. “A gente se sentia de mãos amarradas”, relembra. Assim, começaram a pedir socorro, até serem resgatadas. Apesar das perdas materiais, ela destaca a solidariedade da comunidade como essencial para o recomeço. “As pessoas vinham o tempo todo oferecendo ajuda. Isso nos deu força para seguir.” A filha grávida não teve complicações de saúde, e em breve, a neta de Leonice fará 10 anos. Com o tempo, a família reconstruiu a vida, mas optou por vender a casa e se mudou há cerca de dois meses. “Não dava mais pra viver com medo. Toda vez que chovia forte, ninguém dormia.” Para Leonice, é fundamental que autoridades sigam olhando o Rio Iracema com atenção, e que a população se conscientize de não descartar entulhos nas margens do rio. “Não queremos que outras famílias passem pelo que vivemos.”
O Bombeiro Militar, Sargento Alencar Alberti, compartilhou relatos sobre os resgates, pois estava de plantão naquela madrugada. Segundo ele, por volta das 3h, já havia registros de inundações em pontos críticos e já se trabalhava nestas ocorrências. Algumas horas depois, o Rio Iracema subiu rapidamente, exigindo resgates mais complexos. Ao verificarem a situação das pontes, foram abordados por famílias ilhadas nas proximidades do Estádio Dr. Leal Filho — entre elas, idosos e crianças — que foram retirados prontamente, apesar das dificuldades causadas pela altura da água e pela força da correnteza. O plano de emergência foi acionado para mobilizar todo o efetivo e contar com apoio de bombeiros de municípios vizinhos. O rio dividiu a cidade ao meio, impedindo acesso de um lado para o outro. Mesmo assim, todos os resgates foram concluídos com sucesso. O apoio de moradores com embarcações também foi fundamental. Um dos resgates mais difíceis para Alberti ocorreu nas imediações do supermercado Iguatemi, no Novo Bairro, onde um casal de idosos se encontrava com a maior parte do corpo submerso, exigindo um resgate urgente. A correnteza era forte, e foi necessário subir em um carro lateralizado e içar um cabo de aço na estrutura do mercado. Parte do percurso foi feita com ajuda da Polícia Ambiental, em um barco a motor. Ao se aproximarem, lançaram um bote para alcançar os idosos, colocar coletes salva-vidas e retirá-los com auxílio do cabo. As operações seguiram até cerca de 9h da manhã, quando a água começou a baixar. Alberti não soube precisar quantos resgates realizou, mas sabe que foram muitos. Em seguida, foi montado um posto de comando com autoridades e órgãos de segurança para coordenar as próximas ações. “Foi um trabalho intenso, que mobilizou toda a estrutura de emergência e solidariedade da comunidade”, concluiu.
Durante a cobertura da enchente, a jornalista Ilaine Rohden, que trabalhou na redação do O Líder na época, relembra a manhã dramática em que a cidade acordou com água invadindo as casas. “O jornalismo se mostrou prestativo. Era impossível ficar apenas observando”, conta. Naquele dia, toda a equipe contribuiu com o trabalho realizado. Indo até os locais alagados, Ilaine recorda que, além de registrar momentos para o trabalho, buscou ajudar quem chegava dos resgates nas embarcações. Outro momento marcante foi quando ouviu pedidos de socorro vindo de uma casa próxima ao rio, onde Leonice Knebel estava com sua família. Sem contato com os bombeiros, que estavam com telefone fora de funcionamento devido aos problemas de telefonia daquele dia, ela encontrou ajuda de um bombeiro civil e um bombeiro aposentado que passavam pelo local. Os informou das pessoas necessitando de socorro. “O que mais me marcou foi a união das pessoas. Todos se ajudando, com cordas, com barcos, com o que fosse possível. Foi um verdadeiro mutirão pela vida.”
O repórter Celso Antônio Ledur acompanhou diversas enchentes em Maravilha ao longo de sua trajetória profissional, mas recorda que a de 2015 foi, sem dúvidas, a mais severa. “Casas e ruas completamente alagadas, e o interior do município também foi fortemente castigado”, relembra. Ele destaca as imagens marcantes dos resgates feitos com barcos, com a participação não apenas dos órgãos oficiais, mas também de moradores que auxiliaram de forma voluntária. A enchente afetou profundamente residências, comércios e a produção rural. Celso também ressalta o grande esforço coletivo naquele momento: “A comunidade como um todo se mobilizou — pessoas físicas, entidades, empresas e os poderes públicos, em todas as esferas, se uniram para enfrentar a situação.”
Após a enchente de 2015, o Rio Iracema contou com a execução de obras de melhoria fluvial, visando ampliar a capacidade de vazão da água e prevenir enchentes de grandes proporções. Na cidade, trechos do rio passaram por intervenções de alargamento e aprofundamento do leito, além de serem realizados revestimento dos taludes para proteção com colchões reno e gabiões em alguns pontos. As ações também envolveram substituições de pontes. O investimento das intervenções foi superior a R$ 7 milhões, com recursos que o então deputado Celso Maldaner alocou em Brasília para a obra. Após uma série de questões burocráticas, a execução de obras junto ao leito do rio teve início em 2019. Em entrevista veiculada pelo Jornal O Líder na época, a então prefeita de Maravilha, Rosimar Maldaner, definiu o momento como histórico. O trabalho mudou a paisagem do rio e a comunidade não vivenciou transtornos naquela proporção.
Em conversa com a atual Administração Municipal, o prefeito Vinicius Ventura reforça a importância de um trabalho voltado à prevenção e respostas a extremos climáticos, como é o caso de enchentes. Quanto as ações junto ao rio, revela que está sendo realizado um trabalho para regularizar questões ambientais, pois é necessário atender a estas condições para executar novas intervenções. Segundo a gestão, no momento existe o recurso de R$ 1 milhão para este fim, obtido por meio de emenda parlamentar da deputada federal Daniela Reinehr.
Outra estratégia destacada por Ventura é a necessidade de substituição de pontes antigas, que, em períodos de chuvas intensas, dificultam o escoamento da água. A administração está em diálogo com a Defesa Civil estadual para viabilizar esses projetos.